Recensão:
"História Judaica, Religião Judaica - O peso de três mil anos”
Resenhado por Ney
Brasil Pereira
Revista Eclesiástica Brasileira (REB)
65, n. 258, abril de 2005.
[...]
Agora, o livro de Israel Shahak, História Judaica, Religião Judaica,
com o subtítulo: O peso de 3000 anos. Sobre o autor, é importante
esclarecer que é judeu, nascido em Varsóvia, na Polônia, mas
emigrado para a Palestina em 1945, aos 12 anos de idade. Chegou,
portanto, à região antes da criação do Estado de Israel, e lá vive
até hoje, sendo testemunha ocular dos fatos. Doutorado em química,
foi professor na Universidade Hebraica da Jerusalém entre 1963 e
1981. Desde a década de 60 tornou-se crítico do sionismo, e em 1970
foi eleito presidente da Liga de Direitos Humanos e Civis. Entre
seus livros, este, sobre a História e a Religião de Israel, avulta
em importância, pela franqueza e conhecimento de causa com que
aborda o assunto, vital para se entender a Questão da Palestina.
História Judaica, Religião Judaica foi publicado em inglês em 1994,
pela Pluto Press, e reimpresso, com novo prefácio, em 1997. Desse
ano data igualmente a tradução portuguesa, realizada em Portugal, e
impressa em Lisboa, por Hugin Editores. Os dois prefácios do livro
são assinados por Gore Vidal e por Edward Said. Do prefácio de Gore
Vidal, cito o seguinte: “A partir de Jerusalém, Israel Shahak não
cessa de analisar não só a penosa política de Israel hoje mas o
próprio Talmude, e o efeito de toda a tradição rabínica num pequeno
Estado que o rabinado de direita tenciona transformar numa teocracia
só para judeus (p. 8 )... Aqueles que o escutarem ficarão certamente
mais sábios e – poderei dizê-lo? – melhores. Shahak é o mais
recente, se não o último, dos grandes profetas” (p. 9).
Do prefácio de Edward Said: “Shahak cunhou a expressão
‘judeu-nazista’, para caracterizar os métodos usados pelos
israelenses para submeter e reprimir os palestinos. Todavia, nunca
disse ou escreveu algo que não descobrisse por si próprio, visse com
os seus olhos, experimentasse diretamente. A diferença entre Shahak
e a maior parte dos outros israelenses é que ele estabeleceu as
ligações entre sionismo, judaísmo, e as práticas repressivas contra
os ‘não-judeus’: e, claro, tirou as suas conclusões” (p. 11).
“Shahak vai ainda mais longe. É um secularista absoluto e sem
vacilações quando se refere à história humana. Por isso não quero
dizer que seja contra a religião, mas antes, que é contra a religião
como uma maneira de explicar os acontecimentos, justificar políticas
irracionais e cruéis, engrandecer um grupo de ‘crentes’ à custa dos
outros” (p. 12).
O livro se divide em seis capítulos. As notas, importantes e
numerosas, foram infelizmente relegadas para o final do livro,
ocupando um total de 12 páginas. Evidentemente, para facilitar a
verificação das justificativas do autor, elas deveriam ser notas de
rodapé. Quanto à tradução, apesar de feita em Portugal, onde se
imagina que a revisão e a própria tradução seriam cuidadosas,
pareceu-me deixar a desejar, como demonstrarei mais adiante. Sirva
de exemplo o uso repetido do adjetivo “israelita” (referente ao
Israel bíblico) em vez de “israelense” (referente ao Israel
moderno), por exemplo na citação que fiz acima, da página 11.
O primeiro capítulo, intitulado em forma de pergunta – “Uma utopia
fechada?” – procura definir o Estado judeu, a ideologia da “terra
redimida”, o expansionismo israelense (não “israelita”), e termina
apresentando o dilema que Israel hoje enfrenta: “ou tornar-se um
ghetto completamente fechado e aguerrido, uma Esparta judaica,
sustentada pelo trabalho dos hilotas árabes, mantida pela sua
influência no aparelho político dos Estados Unidos e pelas ameaças
de usar o poder nuclear, ou tentar tornar-se uma sociedade aberta. A
segunda escolha está dependente de um exame honesto do seu passado
judaico, da confissão de que o chauvinismo e exclusivismo judaicos
existem, e de um exame honesto das atitudes do judaísmo em relação
aos não-judeus” (p. 29).
No 2o capítulo, “Preconceitos e prevaricação”, Shahak começa falando
da evolução que atingiu as comunidades judaicas por força da
modernidade, a partir de fins do século XVIII: antes fechadas,
coagindo até fisicamente seus membros, pouco a pouco tiveram de
abrir-se e aceitar, mesmo a contragosto, a garantia dos direitos do
indivíduo (cf. p. 30). Quanto ao “fechamento”, assim o descreve o
autor: “Era um mundo afundado na superstição, fanatismo e ignorância
mais abjetos, um mundo em que o sentido crítico, que é supostamente
característico dos judeus, estava totalmente ausente. E nada era tão
proibido, temido e conseqüentemente perseguido, como a mais modesta
inovação ou a crítica mais inocente” (p. 35). Na p. 41, o subtítulo
“A decepção continua” parece mal traduzido, porque o teor do
parágrafo dá exemplos de falsificações, fraudes, enganações, como é
o caso da publicação bilíngüe do Livro do Conhecimento, de
Maimônides, em Jerusalém, 1962: a tradução inglesa ameniza
expressões que no hebraico são conservadas na sua crueza (p. 42).
Outro caso de “envenenamento das mentes” é o do livro Hatanya, do
movimento Habbad, do Hassidismo, segundo o qual “todos os não-judeus
são criaturas totalmente satânicas, em quem não existe nada de bom”
(p. 44). E, no entanto, um grande humanista como Martin Buber,
“louvaminhando todo o movimento hassídico, sem ao menos sugerir
quais as doutrinas reais do Hassidismo em relação aos não-judeus,
contribuiu também para a enganação” (p. 45). No final do capítulo,
ao referir-se ao silêncio e às justificativas em relação à opressão
dos palestinos, Shahak fala da sua própria “luta contra o racismo e
o fanatismo da religião judaica”, contra a qual porém se erguem “não
só os racistas judeus, mas também os não-judeus que, em outras
áreas, se rotulam de progressistas” (p. 48).
O capítulo 3o, intitulado “Ortodoxia e Interpretação”, é dedicado,
como o autor mesmo esclarece, “a uma descrição detalhada da
estrutura teológico-legal – não “tecnológico-legal” (!) – do
judaísmo clássico” (p. 49). E por “judaísmo clássico” ele entende,
segundo a Nota explicativa, o judaísmo rabínico depois do ano 800 dC
até fins do séc. XVIII. Shahak começa questionando a “ilusão” de que
a religião judaica seja, ou tenha sempre sido, monoteísta (p. 49),
afirmação realmente provocadora, diante do fato de que o dogma
central do judaísmo bíblico é justamente a unicidade divina,
expressa no “Shemá”: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é
um só (Dt 6,4). Mas Shahak explica que o judaísmo clássico esteve
“longe do monoteísmo puro”, e isto por influência da cabala, segundo
a qual o universo é dominado por várias divindades (p. 50)... Afirma
também que o judaísmo “não é uma religião bíblica” (p. 53), porque a
interpretação dos textos bíblicos não é a que provém do seu sentido
literal, mas a que é imposta pelo Talmude (p. 53). Quanto ao próprio
Talmude, sua estrutura é explicada nas páginas 56-60, seguindo-se
uma amostra do sistema das “dispensas”, que Shahak denuncia como um
sistema “hipócrita”, que foi “a causa mais importante do aviltamento
do judaísmo na época clássica” (p. 60). Um exemplo, entre outros, da
contundência da crítica do autor, encontramo-lo na p. 68: “Nas
poucas áreas da vida pública em Israel que são completamente
dominadas pelos círculos religiosos, o nível de chicanice,
venalidade e corrupção ultrapassa notoriamente o nível médio
tolerado pela sociedade israelita não religiosa”...
O capítulo 4o aborda o que Shahak chama de “o peso da história”. Ele
insiste em que não é possível abordar o judaísmo como um todo, sendo
necessário distinguir, em sua história, quatro fases principais: 1)
a fase dos antigos reinos de Israel e Judá, até a destruição do
primeiro Templo, em 587 aC, e o exílio babilônico; 2) a fase dos
dois centros judaicos, na Palestina e na Mesopotâmia, desde o
regresso de Babilônia até cerca de 500 dC; 3) a fase do judaísmo
“clássico”, ou medieval, que vai até o iluminismo e a revolução
francesa; 4) enfim, a fase moderna. Do judaísmo clássico,
especialmente a partir dos séculos XI e XII, Shahak descreve “três
características principais”, explicadas nas p. 71-76. A seguir,
informa sobre esse judaísmo na Inglaterra, França e Itália, no mundo
muçulmano, na Espanha cristã e, enfim, na Polônia. Comenta
igualmente as perseguições sofridas pelos judeus nesse período, bem
como, nas p. 87-90, fala do anti-semitismo moderno e, a seguir, nas
p. 91-94, da “resposta sionista”. Depois de fazer uma aproximação
entre a ideologia de “raça” do nazismo e a do sionismo, afirma que
este vai tendendo “para uma combinação de todos os ódios antigos do
judaísmo clássico contra os gentios e para o uso indiscriminado e
não-histórico de todas as perseguições aos judeus no passado, de
forma a justificar a perseguição sionista aos palestinos” (p. 94). O
capítulo termina com uma conclamação a “revolucionar o judaísmo”,
expurgando-o “dos preceitos com os quais a religião judaica nas suas
formas clássica e talmúdica está a envenenar as mentes e os
corações” (p. 96). E “o caminho para essa revolução e para tornar o
judaísmo humano, permitindo aos judeus compreenderem o seu próprio
passado, reeducando-se assim fora dessa tirania, reside numa crítica
implacável da religião judaica” (p. 96).
No capítulo 5o, Shahak comenta “as leis contra os não-judeus”
encontradas na Halaká (não “no” Halaká) do judaísmo clássico,
mantida até hoje pelo judaísmo ortodoxo e baseada no Talmude
babilônico (p. 97). E exemplifica com a instrução dada publicamente
aos soldados israelenses religiosos, desde 1973, para, em tempo de
guerra, poderem, ou mesmo, deverem, matar “todos os gentios que
pertençam a uma população hostil” (p. 98). Na p. 103, comentando o
princípio óbvio de que a vida de qualquer ser humano deve ser
preservada, Shahak escreve que, “segundo a Halaká, o dever de salvar
a vida de um judeu é supremo, ultrapassando todas as outras
obrigações e interdições religiosas, enquanto, em relação aos
gentios, ou seja, os não-judeus, o princípio básico é que as suas
vidas, quando em perigo, não devem ser salvas, embora seja também
proibido assassiná-los sem mais”. Nas p. 105-110, ele expõe
criticamente a casuística rabínica sobre a “profanação” do sábado,
justificada quando se trata de salvar a vida de um judeu – vários
casos sendo aí considerados. Nas p. 114-116 Shahak comenta as leis
especiais da Halaká contra os gentios que vivem na “terra de
Israel”, isto é, “segundo a teoria maximalista, não só a Palestina,
mas também todo o Sinai, a Jordânia, a Síria e o Líbano, e até
partes consideráveis da Turquia” (p. 114)! Na p. 119, refere-se ao
“Livro da Educação”, composto por um rabino anônimo da Espanha no
século XIV e atualmente muito popular em Israel, sucessivamente
reimpresso em edições subsidiadas pelo governo. O referido livro
explica as 613 obrigações religiosas (mitsvot) do judaísmo na ordem
em que são supostamente encontradas no Pentateuco, segundo a
interpretação talmúdica. Entre outras coisas, o compêndio deixa
claro que “amar o próximo” é “amar o irmão judeu” e que, por
exemplo, a importância que o judaísmo atribui à misericórdia é,
segundo a Halaká, a misericórdia para com os judeus, não para com os
outros (p. 121). Nas p. 122-124, Shahak comenta as atitudes do
judaísmo rabínico em relação ao cristianismo (bastante duras) e em
relação ao Islam (mais respeitosas).
“Conseqüências políticas” é o título do último e breve capítulo, o
6º do livro. A afirmação inicial é sintomática: “As atitudes
persistentes do judaísmo clássico para com os não-judeus
influenciaram fortemente os seus adeptos, os judeus ortodoxos, e
aqueles que podem ser considerados os seus continuadores, os
sionistas” (p. 125). Outra afirmação, na mesma página: “Mais crises
governamentais israelenses [não “israelitas”] são causados por
razões religiosas, freqüentemente triviais, do que por qualquer
outra causa”. Ainda outra afirmação, na p. 129: “O judaísmo, em
particular na sua forma clássica, é totalitário por natureza...” Por
fim, depois de lembrar que “a parte mais importante da crítica do
passado judaico deve ser uma confrontação pormenorizada e honesta da
atitude judaica para com os não-judeus”, Shahak assim conclui o seu
livro, melhor, o seu libelo: “Embora a luta contra o anti-semitismo
(e contra todas as outras formas de racismo) nunca deva cessar,
igualmente a luta contra o chauvinismo e exclusivismo judaicos, que
deve incluir a crítica do judaísmo clássico, é agora de importância
igual ou superior” (p. 130).
Confesso que fiquei impressionado com essa crítica demolidora do
judeu Shahak ao judaísmo clássico, sobrevivente ainda hoje, e com a
sua insistência na necessidade de uma profunda autocrítica dos
dirigentes religiosos do seu povo. Contudo, apesar de o livro ter
sido escrito há mais de dez anos, em 1993, com tanta franqueza
profética, não há indícios de qualquer reversão – muito pelo
contrário! – no processo de aniquilamento de todo um povo, cujo
único crime é o de estar ocupando a terra que “por direito divino”,
que ignora o “direito humano” dos palestinos, pertence a Israel.
Ney Brasil Pereira